Sobre a lenda

O contexto em que se situa uma obra literária é importante, assim como é importante entender a posição espacial e contemporânea (atual) do pesquisador. É o nosso conhecimento das obras arturianas e a compreensão do desenvolvimento desses textos como expressões dos mundos em que foram escritos que podem nos oferecer algumas das respostas que buscamos.

Por mais de três séculos, a Britânia foi um território incorporado ao Império Romano. Com o fim da dominação por parte de Roma, em 410 d.C. o território entra em um período no qual fica conhecido como Britânia sub-romana.

O fim da ocupação romana criou um vazio de poder no território, deixando a Grã-Bretanha, cuja cultura trazia traços derivativos tanto dos celtas como dos romanos, vulnerável a ataques de saxões, tribos germânicas.

É dentro desse contexto turbulento que estão abrigadas as lendas arturianas. Tradicionalmente, podemos considerar que a figura de Artur é uma que luta para preservar um mundo influenciado pela civilização romana contra a investida da barbárie saxônica. Ou seja, as lendas nasceram a partir de influências diversas, sendo oriundas das culturas celta e romana e de um período de embates contra invasores germânicos.

No entanto, o período que abrange a Britânia sub-romana é um momento que traz, com si, muitas dúvidas, devido à baixa quantidade de fontes escritas. A escassez de documentos é um dos principais motivos pelo qual a questão da existência histórica de Artur Pendragon, o famoso rei Artur, enfrentou tanta polêmica ao longo dos anos.

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“O 'mapa do mundo anglo-saxão' contém a mais antiga representação conhecida e relativamente realista das Ilhas Britânicas. Foi criado, provavelmente em Canterbury, entre 1025 e 1050, mas provavelmente se baseia em um modelo que data da época romana. [O mapa] mostra as províncias do império romano, das quais 'Britannia' (Inglaterra) era uma. O mais tentador de tudo é o que parecem ser duas figuras lutando na península. Eles poderiam se referir ao conflito entre os saxões e os bretões nativos nos séculos seguintes à partida dos romanos no início do século V, que deu origem à lenda do rei Artur?”

The British Library

Ou seja, a legitimidade de Artur foi amplamente disputada por historiadores ao longo dos séculos, que debateram com fervor sobre a possível existência do rei.

Durante esta jornada, é importante lembrar que a população medieval, em grande parte, não separava com rigor fatos históricos de fantasia. Uma “verdade” moral, uma boa história com uma lição valiosa, podia ser considerada mais importante do que a exatidão factual.

Hoje, a maior parte dos estudiosos acredita que Artur tenha raízes mitológicas ao invés de históricas.

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“Devo confessar ser o que pode ser chamado de um arturiano agnóstico e romântico. Isso quer dizer que eu gostaria que Artur tivesse existido, mas devo admitir que não há nenhuma evidência – pelo menos nenhuma admissível em qualquer “tribunal histórico” sério – de que ele tenha existido. Simultaneamente, porém, também admito que é impossível provar com certeza que ele não existiu, que não se pode demonstrar com certeza que não há "fogo” por trás da “fumaça” de mitos e lendas posteriores.”

Guy Halsall, historiador e acadêmico inglês, em Worlds of Athur: facts & fictions of the Dark Ages

Do século VI ao XIV vemos a ascensão e queda de Artur. O personagem foi se desenvolvendo até se tornar uma figura tida como essencial à história britânica, sendo depois marginalizado e desacreditado nos séculos XVI e XVII como personagem histórico e, finalmente, excluído da realidade histórica ‘factual’. Para os vitorianos tardios, portanto, Artur era tido como irrealidade histórica, mas também era considerado um ícone valioso nos mundos da arte e da literatura.

Assim, podemos nos perguntar: como surgiu a lenda? Embora não exista uma resposta definitiva para esta questão, podemos conhecer e analisar partes importantes do desenvolvimento do ciclo arturiano que acabaram por culminar em múltiplas e diversificadas versões, que formam hoje a criativa constelação de lendas que conhecemos.

Linha do tempo

FONTES  HISTÓRICAS
PERSoNAGENS
Idade Antiga
Idade Média
Idade Moderna
Idade Contemporânea
410:
Fim da dominação romana na Britânia
Século V:
invasão dos Saxões na
Grã Bretanha
466:
Nascimento de Clóvis, primeiro rei dos Francos
476:
Fim do Império romano do ocidente e da Antiguidade
477:
Fundação do Reino de Sussex,
anglo-saxão,
na Grã Bretanha
589:
Separação da Inglaterra em
7 reinos
622:
Fuga de Maomé de Meca
751:
Proclamação
de Pepino,
o breve, como rei dos Francos
768:
Carlos Magno assume o poder
865:
Invasão
viking na
Grã-Bretanha
871:
Início da unificação dos reinos britânicos por Alfredo, o Grande
924:
Início do reino de Æthelstan, "o primeiro rei da Inglaterra unificada"
1095:
Primeira cruzada
1096:
Estabelecimento da Universidade
de Oxford
1347:
Grande Peste
1453:
Queda do Império Romano do Oriente
1492:
Colombo desembarca no continente americano
Século XV:
Renascimento
1564:
Nascimento de Shakespeare
1605:
Publicação de Dom Quixote de La Mancha
1789:
Revolução Francesa
1822:
Independência do Brasil
Século V
Século VI
Século VII
Século VIII
Século IX
Século X
Século XI
Século XII
Século XIII
Século XIV
Século XV
Século XVI
Século XVII
Século XVIII
Século XIX
Século XX
Século XXI
De Excidio et Conquestu Britanniae
Sobre
Detalhe de página
Texto em inglês
Y Gododdin (poema)
Sobre
Cópia digitalizada
Historia Brittonum
Sobre
Annales Cambriae
Sobre
As batalhas de Artur
Historia Regum Britanniae
Sobre
O descanso de Artur em Avalon
Red Book of Hergest, manuscrito que contém uma tradução galesa
Roman de Brut
Sobre
Sir Galahad é levado à corte do Rei Artur
Primeira página da cópia sobrevivente mais antiga do manuscrito
Construção de Stonehenge por um gigante com a ajuda de Merlin
Poemas de Chrétien de Troyes
Sobre
Poemas de Robert de Boron
Sobre
Cavaleiros da Távola Redonda
Ciclo da Vulgata
Sobre
Como Merlin foi concebido por um demônio
Sir Lancelot e a rainha Genebra
A penitência de Genebra
O encontro de Sir Lancelote e Rainha Genebra
Pós-vulgata
Sobre
A procura pelo Cálice Sagrado
Ilustrações do poema anônimo Sir Gawain and the Green Knight
Le Morte d'Arthur
Sobre
Fotos da única cópia manuscrita sobrevivente
Ilustrações de uma edição de 1893
Idylls of the King
Sobre
Rei Artur
Merlin e o futuro Rei Artur
A morte de Artur e Mordred
Lancelot
Merlin encontra o bebê Artur
A Espada era a Lei
Sobre
Trailer do filme
Merlin
Sobre
Trailer da série
Artur
De forma geral, podemos considerar que Artur é uma figura ocasional (ou seja, aparecia infrequentemente) na literatura britânica até 1000 d.C, tendo sido omitido da maior parte das poesias que sobreviveram. O relato de Gildas é apenas um desses exemplos.
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Artur
A obra enfim coloca Artur no centro de situações relevantes e é a primeira fonte oficial a descrever diversas de suas façanhas como um grande líder militar. Aqui, entretanto, Artur em nenhum momento é tido como parte da realeza; a obra construiu Artur como apenas um grande guerreiro.
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Mordred
Os Annales Cambriae mencionam Mordred pela primeira vez, mas não deixam claro se ele é inimigo ou aliado de Artur.
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Artur
No século XII, a personagem de Artur assume muitas de suas facetas que se tornarão tradicionais: em Historia Regum Britanniae Artur vira rei, é auxiliado pelo mago Merlin, se casa com Genebra e encontra seu descanso final em Avalon. A liderança na guerra era percebida como uma parte fundamental do papel dos reis na Idade Média central, o que pode constituir um dos principais motivos para a entronização de Artur.
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Genebra
Godofredo de Monmouth é quem introduz Genebra, assim como a infidelidade tão intimamente associada à personagem. Porém, Genebra inicialmente trai Artur com Mordred. Chrétien de Troyes expande a mitotologia da personagem e a torna amante de Lancelote, ao invés de Mordred. Após este momento, Genebra tradicionalmente toma como amante Lancelote, mas a interpretação dos sentimentos da personagem por Artur e Lancelote são inconstantes ao longo dos séculos e subjugados ao desenrolar das diferentes obras e, consequentemente, à visão do autor que os descrevem.
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Morgana
Morgana é, sem dúvidas, uma das personagens mais ambíguas dentro da literatura arturiana. Suas primeiras aparições (a primeira sendo em Historia Regum Britanniae) não elaboram sua personagem para além de seu papel mágico, geralmente benevolente, e sua conexão positiva com Artur. 0s poemas de Chrétien de Troyes são uma das primeiras instâncias de Morgana como irmã de Artur.
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Mordred
Godofredo de Monmouth introduz a noção de usurpação do trono por parte de Mordred e acrescenta um relacionamento adúltero entre Mordred e Genebra, esposa de Artur.
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Merlin
Godofredo de Monmouth apresenta Merlin, mago e profeta, inicialmente introduzido como conselheiro do pai de Artur, Uther Pendragon.
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A dama do lago
Chrétien de Troyes apresenta a primeira história que introduz Lancelote como um personagem proeminente e que menciona a criação do cavaleiro por uma fada em um lago.
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Lancelote
A história de Lancelote como conhecemos hoje, como o mais famoso cavaleiro da corte de Artur e celébre amante de Genebra, foi iniciada no século XII pelo poeta francês Chrétien de Troyes.
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Morgana
"A proeminência de Morgana aumentou à medida que as lendas se desenvolveram ao longo do tempo, assim como sua ambivalência moral e crescente antagonismo, evidentes particularmente após o Ciclo da Vulgata. É possível que o antagonismo acrescentado à Morgana seja influenciado por motivos religiosos e associações de magia, um aspecto inerente à personagem, com bruxaria."
(Enstone, 2011)

“Resumindo, há duas razões principais plausíveis para que Morgana tenha sido transformada em uma bruxa nêmesis de Arthur. Em primeiro lugar, deve-se considerar a já mencionada relação entre mulheres e magia. Enquanto a magia é uma parte fundamental do romance como gênero, a exibição de habilidades sobrenaturais na sociedade não era uma característica positiva. Em segundo lugar, deve-se ter em mente a progressiva cristianização das narrativas arturianas. [...] A Igreja Católica, preocupada com o controle cultural, ajudou a construir um novo ideal de heroína.”
(Martins, 2015)
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Mordred
No Ciclo da Vulgata, Mordred torna-se filho de Artur com sua meia-irmã, Morgana.
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Merlin
É nas obras de Robert de Boron e no Ciclo da Vulgata que o nascimento de Merlin é descrito como projetado por demônios, que esperam trazer ao mundo um anticristo que desfaça o bem (ou, como eles veem, o mal) feito por Cristo ao redimir a humanidade. Assim como Genebra e todos os outros personagens da lenda arturiana, a caracterização de Merlin oscilou ao longo dos séculos, atendendo aos interesses da época e/ou do autor.
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A dama do lago
O Ciclo da Vulgata indica a dama do lago como protetora de Lancelote e residente de um reino encantado sobrenatural, cuja entrada é disfarçada como uma ilusão de um lago. À ela é atribuido, enfim, um nome: Viviane. A partir daqui, a dama do lago passa a ser a responsável pela morte de Merlin, que se apaixona por ela. A tradição da Pós-Vulgata traz mistério à personagem, transformando-a em uma benfeitora de Artur, que famosamente lhe concede a espada Excalibur. O confuso? A Pós-Vulgata traz, também, Viviane – ou seja, o que antes era uma personagem, agora são duas. Em outros casos registrados, a identidade de Viviane e da dama do lago se confundem também com a de Morgana.
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Mordred
A versão em que Mordred é filho de Artur com sua meia-irmã, Morgana, é perpetuada. Eventualmente, quando Artur – que não sabe que Morgana é sua irmã – descobre que teve um filho com ela, tenta matar Mordred, que sobrevive. Uma vez adulto, Mordred se torna vingativo e ambicioso: reivindica o trono de Camelot e pretende se casar com Genebra. Enfim, na batalha final que se dá entre pai e filho, Artur fere fatalmente Mordred, que se empala ao longo da lança de Artur para poder também golpear o pai.
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A dama do lago
Thomas Malory apresenta três distintas damas do lago. A mais relavante o autor nomeia de Nimue e a separa da criação de Lancelote, deixando a associação para uma dama não nomeada. Nimue é a dama tida como benfeitora de Artur, envolvida também no "adormecer" de Merlin.
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Artur
O Artur retratado na obra seguia ideais vitorianos da época e respeitava suas condutas éticas.
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Artur
A Espada era a Lei mostra ao telespectador Artur como uma criança órfã e de origens humildes. Assim como outras obras da época, explora dimensões ainda então pouco esmiuçadas da lenda – dentre elas, a infância do rei.
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Merlin
Merlin é retratado como um velho e sábio mago.
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Artur
Para dinamizar a relação entre os dois, Merlin traz Artur como um príncipe adolescente e arrogante, inexperiente em meio às intrigas da corte de Uther Pendagron.
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Merlin
Na série, Merlin é representado como um jovem mago desengonçado, ao invés de um velho sábio. Assim, no caminho de tornar-se mentor de Artur, desenvolve com ele também grande amizade e parceria.
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Mapa histórico

Pesquisa e elaboração do conteúdo

Beatriz Ruffino (Biblioteca)

Concepção editorial e design digital

Paola Nogueira (Editoração)

Mapa histórico

Léo Yanaguihara (Editoração)

2023